Monday, December 05, 2005

A quintinha das celebridades

O tacão de um sapato de salto alto que a Maria Joaquina, por esquecimento ou desprendimento, deixou preso numa das grelha do saneamento básico é, em Paris, para os parisienses ou para todos os que visitam a cidade da luz, pura arte. A arte é uma espécie de sorte pois depende muito mais dos olhos de quem a vê do que das mãos de quem a faz. Paris, tal como a arte, é uma sorte: O fotógrafo pode perder a sua existência tantas são as objectivas e a subjectividade a fotografar; O músico é parte intrínseca de qualquer esquina, extensão de qualquer espaço; O pintor que pinta arrisca em cada segundo ser pintado; o actor confunde-se e mistura-se com a multidão que cínica finge-se atenta a todas as coisas.
Em Paris, como em quase todas as coisas, não se deve começar logo pelo meio, sob o risco de nunca conseguirmos chegar a cada uma das suas partes. Quem parte do Norte para o Sul tem uma visão panorâmica da cidade oferecida pelo Sacré-Coeur, caso faça a investida de Oeste para Este a visão global pode ser apreciada do cimo da Tour Eiffel. Do Sul para Norte pode começar-se pela Bibliotèque Nationale de France e de Leste para Oeste por que não se iniciar na Operá Bastille?
O Louvres! Bem... O Louvres...
Era Novembro e eu não fora visitar os meus mortos – nesta reflexão lembro-me que tenho muito mais mortos que ainda estão vivos do que mortos realmente mortos. Em remissão para os meus pecados comecei a calcorrear Paris pelo Cimetière du Père-Lachaise. Assim, sem mais! Não me fazendo anunciar, avancei para uma visita a quem jamais ma poderia negar - ali as coisas têm a importância do pó, algo muito mais efectivo que os homens.
Segui o traçado amarelo no mapa - bem, aquilo não é uma quinta, é uma aldeia, uma vila, feita de flores, pedra e silêncio. O primeiro ilustre apareceu, quase como uma harmonia: Alan Kardec. Alan Kardec mexeu com os meus 18 anos. Mexeu tanto que tive que parar a meio e, até hoje, volvidos longos anos, não mais lhe peguei. Tenho medo. Medo! Medo de fazer algumas perguntas pelas respostas que lhe estão subjacentes. Depois vieram outros tantos, todos singelos, todos simples, tentando passar incógnitos na multidão: Proust, Oscar Wilde, Edith Piaf, Siegel, Pascal e por fim, o Jim. Se o jazigo de Oscar Wilde me impressionou pelo design e pelas centenas de lábios femininos marcados a baton na pedra fria (há homens que até depois de mortos continuam a seduzir), o jazigo de Jim Morisson, arrumado atrás de muitos outros, deixou-me aquela impressão de que muito pouco somos neste pequeno calhau que absorto gira em volta do sol. Junto ao jazigo estava um casal jovem vestido de preto e a chorar. Quem visse a cena de fora iria jurar que o morto acabara de ser sepultado. O casal estava perdidinho! Mais atrás, completamente bêbado (só bêbado, pois não me cheirou a droga), um jovem encetava um grandioso discurso e via-se que só ele sentia o calor dos aplausos. Pensei em Aldous Huxley e nas suas “Portas da Percepção”. Pensei nas portas e na forma como elas induziram aquele momento. Pelas portas Jim Morrison se erigira e sucumbira. Em busca das mesmas portas, ou de outras quaisquer, encontrava-me eu ali como me encontro em todos os lugares por onde passo. A vida... A minha vida, é um conjunto de circunstâncias que têm que se mesclar afinadas. Eu procuro e faço as minhas circunstâncias e, no entretanto, vou, com paciência, aprendendo a afinar.

5 Bocas:

Anonymous Anonymous Disse...

Há alguns anos, morreu uma pessoa que me era muito próxima, em circunstâncias bastante angustiantes - o suficiente para que o meu pensamento entre automaticamente em malabarismos sempre que falo disso, tentando aflitivamente desviar a minha reflexão do tema (certas dores são incompatíveis com a nossa sobrevivência). A pessoa morreu e eu fiz o que se esperava: velório, missa, cortejo fúnebre, tudo até ao último momento. O caixão foi aberto junto ao túmulo e eu despedi-me dela com um beijo na face, branca e gelada. Fui eu que atirei o primeiro punhado de terra. Tudo o que todos esperavam de mim. Nada do que eu esperava de mim. É que sempre gostei de entrar e de estar em cemitérios, nunca me causaram qualquer desconforto, nem naquela ocasião. Não sentia verdadeiramente a morte dela, era como se observasse um documentário, não conseguia abandonar o papel de voyeur. Devia estar com um aspecto horrível, tamanha a consternação que via nos rostos dos que me rodeavam e me observavam. Foi dos raros momentos da vida em que senti remorsos, pela ausência de sentimento de perda. Pensei que chegaria mais tarde, talvez em casa, talvez na semana seguinte, talvez quando ela me faltasse num daqueles rituais que se tinham incrustado no nosso tempo. Mas o tempo foi passando sem que a perda transitasse entre ser entendida e ser sentida. Ocasionalmente, regresso ao cemitério sem companhia, por mero capricho. Tal como tu, caminho entre os granitos e as velas. Tal como tu, encontro visitantes mais ou menos bizarros. Parece-me que a única diferença é que os meus mortos estão vivos. O luto que se nega é a maior das assombrações.

11:29 PM  
Blogger leslie Disse...

Il restera toujours des questions en suspend...

9:02 AM  
Anonymous Anonymous Disse...

Um homem pode ficar feliz com qualquier mulher a condiçao que nao esteia apaixonado dela.
Oscar Wilde

4:09 PM  
Anonymous Anonymous Disse...

Não devias sentir medo de algo só porque não compreendes, devias sim, tentar entender. Certas portas abrem-se sempre na altura certa, talvez a tua aínda não tenha chegado.

5:20 PM  
Blogger Kid A Disse...

?

2:39 PM  

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